Quantas empresas pagavam propina a fiscais da Fazenda de SP? Veja o que a investigação já sabe
Por: Aline Ribeiro , Matheus de Souza , João Sorima Neto , Ana Flávia Pilar e
Sérgio Quintella
Fonte: O Globo
O empresário Sidney Oliveira, fundador da rede de farmácias Ultrafarma, e
Mario Otávio Gomes, diretor estatutário do grupo Fast Shop, de
eletrodomésticos e eletroeletrônicos, foram presos na terça-feira após o
Ministério Público de São Paulo (MPSP) deflagrar a Operação Ícaro, que busca
desarticular esquema de corrupção envolvendo auditores fiscais tributários no
Departamento de Fiscalização da Secretaria da Fazenda do estado. Eles tiveram
a prisão temporária por até cinco dias decretada pela Justiça.
Segundo o MPSP, a investigação conduzida pelo Grupo de Atuação Especial
de Repressão aos Delitos Econômicos (Gedec) identificou grupo criminoso
responsável por favorecer empresas varejistas em troca de vantagens tributárias
indevidas.
Foram presos o supervisor da Diretoria de Fiscalização (Difis) da Secretaria da
Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (Sefaz-SP), Artur Gomes da
Silva Neto, apontado como principal operador do esquema, e Marcelo de
Almeida Gouveia, que também atuava na pasta.
Apenas em 2024, o MP encontrou 174 e-mails na caixa de mensagens de Silva
Neto tratando de benefícios fiscais da Ultrafarma. Os dois auditores foram
suspensos do exercício de função pública. Em junho, Silva Neto ganhou R$
33.781,06 de remuneração bruta, além de R$ 30.573,45 de pagamentos
eventuais, mas, com o chamado abate-teto (que limita os ganhos ao salário do
governador), o supervisor recebeu R$ 25.556,04 em proventos líquidos.
Mais de R$ 1 bi em propina
De acordo com o MPSP, o fiscal manipulava processos administrativos para
facilitar a quitação de créditos tributários às empresas. Em contrapartida,
recebia pagamentos mensais de propina por meio de uma empresa registrada
em nome de sua mãe, a Smart Tax, cuja sede era a casa do auditor, em Ribeirão
Pires.
Constatou-se que o fiscal já recebeu mais de R$ 1 bilhão em propina. A
investigação ganhou fôlego depois que foi detectado um salto no patrimônio
da mãe de Silva Neto.
No segundo semestre de 2021, a Smart Tax passou a movimentar valores
elevados, recebendo dezenas de milhões de reais exclusivamente da Fast Shop.
Em 2022, os repasses da empresa chegaram a mais de R$ 60 milhões. Após a
quebra do sigilo fiscal, a Receita Federal identificou que a Smart Tax recebeu
da Fast Shop, em valores brutos, mais de R$ 1 bilhão.
— A mãe de um auditor fiscal, de idade já pouco avançada, sem a capacidade
técnica para prestar qualquer tipo de assessoria tributária, sendo a proprietária
de uma empresa de consultoria tributária e prestando serviços cujos honorários
são milionários para grandes empresas do varejo. Esses recebimentos são
comprovados através de emissão de notas fiscais. Essas emissões geraram
recolhimento de ICMS, tudo feito, a não ser pela ilicitude do mérito,
formalmente, tudo de maneira correta — afirmou o promotor de Justiça
Roberto Bodini.
Viagens a paraísos fiscais
De acordo com a investigação, os dados fiscais de Silva Neto mostraram que
ele fez inúmeras viagens nos últimos anos para países considerados paraísos
fiscais: Suíça e Emirados Árabes Unidos. Ele também esteve no Uruguai, que
não é paraíso fiscal, mas tem leis vantajosas para estrangeiros criarem operações
financeiras internacionais, segundo a investigação.
Nos autos do processo, o Ministério Público aponta semelhança entre serviços
prestados para Ultrafarma e Fast Shop: “O fiscal orienta os membros da
empresa em relação aos pedidos de ressarcimento de créditos de ICMS-ST
(Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços com Substituição
Tributária), auxilia-os na tarefa, compilando até mesmo documentos para a
empresa que deverão ser enviados à Secretaria de Fazenda, confere celeridade
à análise dos pleitos e, por vezes, é o agente público responsável por deferi-los.”
Na prática, o que os fiscais faziam era ajudar as empresas a furar a fila do
ressarcimento de crédito do ICMS, acelerar processos e, em alguns casos,
aumentar os valores de forma fraudulenta dos créditos tributários que poderiam
receber. Isso era feito por meio do auxílio às companhias, em ação que ia desde
a coleta de notas fiscais e documentos, passando pela elaboração de pedidos de
benefícios até o deferimento.
Em outra frente, usavam a identidade eletrônica da Ultrafarma, fazendo com
que as ações fossem registradas na Secretaria de Fazenda como se fossem da
empresa. E, por fim, aprovavam encaminhamento prioritário para os pedidos.
Lavagem de dinheiro
O MPSP diz que, na análise de e-mails de Silva Neto, ficou constatada sua
atuação em benefício da Fast Shop “em conluio com inúmeros membros da
alta cúpula da empresa, entre os quais o diretor estatutário Mário Otávio
Gomes”, segundo os autos. Os promotores citam “assessoria tributária
criminosa” à Fast Shop.
Segundo o MPSP, a operação é resultado de meses de trabalho investigativo,
com análise de documentos, quebras de sigilo e interceptações autorizadas pela
Justiça. Os investigados podem responder pelos crimes de corrupção ativa e
passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro.
Com cifras bilionárias, os créditos acumulados de ICMS pelas empresas junto
aos estados são difíceis de serem recebidos. Trata-se de operação burocrática,
que depende de documentos entregues pelas empresas e fiscalização das
secretarias de Fazendas estaduais, o que pode levar anos.
Segundo advogados, no estado de São Paulo, a estimativa é que os créditos
acumulados de ICMS somem entre R$ 8 bilhões e R$ 9 bilhões. Mas um estudo
da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) de 2023, com 300
empresas, mostrou que elas tinham um volume de crédito acumulado de quase
R$ 40 bilhões.
A Sefaz informou ter instaurado procedimento administrativo para apurar a
conduta do servidor e solicitou ao MPSP o compartilhamento de dados: “A
administração fazendária reitera seu compromisso com os valores éticos e
justiça fiscal, repudiando qualquer ato ou conduta ilícita, comprometendo-se
com a apuração de desvios eventualmente praticados, nos estritos termos da lei,
promovendo uma ampla revisão de processos, protocolos e normatização
relacionados ao tema.”
— O esquema existe pelo menos desde maio de 2021, mas ainda estamos
apurando se começou antes. Em relação ao prejuízo para a Fazenda, ainda
estamos calculando — disse o promotor de Justiça João Ricupero.
Cripto e esmeraldas
O MPSP cumpriu 19 mandados de busca e apreensão, nos quais foram
apreendidos mais de R$ 1 milhão, dois sacos de esmeraldas, criptomoedas e
documentos. As joias e a maior parte dos valores foram localizados com outro
investigado, responsável por ajudar na lavagem de dinheiro. O homem já tem
antecedentes por estelionato em Mato Grosso do Sul e mandados de prisão
contra ele e a mulher.
Eles foram encontrados em Alphaville. Outro mandado foi cumprido contra
um segundo fiscal, em São Bernardo do Campo, com quem foram apreendidos
US$ 10 mil, R$ 330 mil e milhões de reais em criptomoedas.
Procurada pelo GLOBO, a defesa de Sidney Oliveira não se manifestou. A
Ultrafarma não comentou. A Fast Shop informou que não teve acesso ao
conteúdo da investigação e colabora com o fornecimento de informações às
autoridades.
Outras empresas
O MPSP ainda investiga se outras empresas se beneficiaram. Entre as
companhias citadas nas apurações estão Allmix Distribuidora, Rede 28 Postos
de Combustíveis, Kalunga e Grupo Nós (dono da OXXO, de mercados).
Documento afirma que Silva Neto vinha “recebendo propina por parte de
outras grandes empresas para beneficiá-las em questões tributárias”.
Em relação à Kalunga, o documento diz que a Sefaz recusou arquivo digital
enviado pela empresa, o que seria indicativo de que ela se beneficiava do
esquema. No caso da OXXO, o MPSP cita e-mail trocado entre Silva Neto e a
Smart Tax, com documentos anexados relativos a “serviços” de consultoria
tributária prestados à empresa.
Em nota ao GLOBO, o Grupo Nós afirmou que não foi notificado sobre a
investigação e que está à disposição das autoridades competentes para, se
necessário, prestar esclarecimentos e colaborar. As demais não comentaram.